Suicídio Emocional

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É muito comum ver mães que se anulam completamente para viver pelos filhos. A pessoa já não vive sua própria vida, mas passa a viver a vida do seu filho. Ela praticamente se despersonaliza, deixa de ser ela mesma, deixa de ter gostos próprios, deixa de sentir a alegria de viver, e passa a viver apenas segundo os ditames da vida do outro. Ela abdica de si mesma e passa a existir apenas pelo outro. Vive em função do outro. Ela já não é mais ela mesma, mas passa a ser uma sombra de seu passado, perdida dentro da carência e da dependência em relação ao filho.

 

É muito comum que pessoas infelizes, que tiveram sérias decepções na vida, passem a viver mais a vida do outro do que a própria vida. Gosto de dar o exemplo da mãe que se anula pelo filho porque esse é o caso mais emblemático desse quadro. A pessoa vive um trauma, uma decepção, um grande sofrimento e não consegue mais viver com alegria, de forma desprendida, com vitalidade, nem consegue mais aproveitar sua existência. Ela não consegue mais ser ela mesma e fica triste tentando resgatar a si mesma,  perdida que está num passado que não retorna mais. Quando ela não consegue mais encontrar a si mesma, ela inconscientemente desiste dessa busca, e começa a se fundir em outra pessoa. Isso pode ocorrer com parentes mais próximos, cônjuge e o mais comum… com filhos.

 

A mulher que é infeliz, que não realizou seus sonhos, que não fez na vida o que gostaria de fazer, que sente que sua vida é insatisfatória, que não consegue mais ter fé nem esperança, ou que entrou num quadro depressivo leve ou mediano, pode se agarrar emocionalmente ao filho. Ela pode também sentir-se solitária e pensar que o filho é a presença mais certa em sua vida, pelo menos por um bom tempo até atingir e metade ou o final da adolescência. Quando o filho ainda é criança, ele depende da mãe. Nesse caso, a mãe sente-se mais confiante de se ligar emocionalmente ao filho, mesmo que de forma neurótica, pois ela sabe que o filho não tem para onde ir, não tem como abandona-la, é uma presença certa por anos e anos em sua vida. Assim, ela passa a viver em função do filho e deixa de viver a triste e solitária vida que ela tinha. É também comum ver mulheres vivendo a vida do marido e vice versa, ou a vida da mãe e do pai. Passamos a experimentar a vida por intermédio do outro e esquecemos de nós mesmos.

 

Vejo muitas pessoas, muitas mesmo, perdendo suas vidas nesse processo. Passamos a viver a vida do outro, e esquecemos completamente de nós mesmos. Alguns podem pensar que esse sacrifício de si mesmo para viver pelo outro é algo positivo, nobre, sagrado, meritório, que enaltece nosso ser e nos faz evoluir, mas não é. Esse é um grande engano, pois viver em função do outro só atrasa nossa vida, nos paralisa e nos faz sofrer. O outro passa a ser como um entorpecente. Sem o outro, não somos nada. Sem o outro, temos dificuldade de ficar sozinhos, conosco mesmos. Sem o outro, nos sentimos vazios. Sem o outro, nem sabemos direito como continuar nossa vida. Muitos não conseguem se imaginar vivendo sem a pessoa em questão, tal é o poder da simbiose que experimentamos. Há pessoas que só em cogitar o término de um relacionamento já sentem desespero, tristeza e uma ausência de si mesmos. E quando a pessoa vai embora, não conseguimos seguir nossa vida. Por que isso acontece? Isso ocorre por um motivo muito simples. Quem estava dentro de nós era o outro, e não nós mesmos. O eu se retira para dar espaço ao outro em nosso interior. Doamos tudo para o outro, e não sobra quase nada para nós. Acreditamos que somos tão essenciais ao outro que nos esquecemos de uma coisa básica: a pessoa que mais precisa de nós, somos nós mesmos.

 

É importante também esclarecer que anular-se por alguém não é sacrificar-se por amor, mas tão somente viver constantemente uma fuga de si mesmo e de uma existência infeliz e solitária. Isso nada mais é do que uma dependência emocional, um vício, uma embriaguez de renúncia a nós mesmos. Não há nada de virtuoso em largar quem somos para viver viciado ou fixado em alguém. A verdadeira renúncia em favor do bem se faz com todas as pessoas, sem distinção, sem eleger escolhidos para destinar nossas boas ações. Se a pessoa escolhe apenas uma ou outra pessoa para canalizar sua bondade, então ela não é boa verdadeiramente, pois a bondade, a caridade, a virtude da solidariedade se faz com todos sem distinção e não apenas com as pessoas que gostamos.

 

O resultado dessa troca de nós mesmos pelo outro é muito clara. Precisamos do outro para nos preencher; para vivermos nossa vida. O outro passa a ser necessário a nós, quase como um vício, uma grave obsessão. Mas quando o outro nos falta, está ausente, ou não faz o que desejamos, queremos imediatamente controla-lo, pois precisamos dele para viver. A simbiose gera uma necessidade de controle que se manifesta principalmente com cobranças, chantagens e manifestações de ciúme. É comum também a pessoa revestir-se do papel de vítima, dizendo o quanto ela se “sacrificou” pelo outro; o quanto já fez pelo outro e o quanto o outro não consegue retribuir sua atenção. Por mais que o outro faça por nós, nunca é suficiente, queremos sempre que o outro esteja cada vez mais presente; que faça cada vez mais coisas; que nos dê mais atenção, pois desejamos de todas as formas que o outro supra nossas carências e tape nosso buraco interior. As cobranças podem ser frequentes, assim como tentativas sistemáticas de controlar as ações do outro. Já que nós não conseguimos ser quem gostaríamos de ser, desejamos que o outro seja por nós, tal como a mãe que deseja que o filho faça medicina porque ela não conseguiu fazer e sente-se frustrada por isso.

 

Ao tomar consciência desse processo, muitos pensam em parar de se anular e retomarem suas vidas. No entanto, aqui ocorre um fenômeno curioso: algumas pessoas passaram tanto tempo se anulando; tanto tempo voltadas para o outro; tanto tempo deixando de serem quem são para se tornarem apenas alguém que vive para o outro, que sequer essas pessoas conseguem retomar quem elas são de verdade. Muitas vezes elas nem lembram de si mesmas, como elas eram, o que faziam, como sentiam a vida, o que gostam, etc. Isso ocorre porque muitas vezes elas perderam o contato consigo mesmas e já não conseguem mais acessar ser verdadeiro ser. Tornaram-se tão fragmentadas vivendo em função do outro que não são mais capazes de restituir seu verdadeiro eu. Seu jeito de ser, sua vitalidade, sua memória, o sentir a si próprio. tudo isso já se perdeu tanto que parece não haver mais retorno ao estado de ser anterior a anulação de si mesmo. Caso a pessoa não faça uma terapia e resolva essa pendência, o resultado inevitável em muitos casos é a tristeza, depressão, sofrimento e em algumas situações o suicídio. Muitos não conseguem recuperar a si mesmos, e quando o outro vai embora, passam a viver como zumbis numa existência penosa, solitária e vazia de sentido e satisfação.

 

Aquele que está infeliz deve buscar maneiras de curar essa infelicidade e restabelecer sua alegria de viver. Essa é a forma correta de proceder. Fugir de seus problemas e evitar sua própria realidade para ser pelo outro, respirar pelo outro, experimentar a vida pela perspectiva do outro, não é saudável, não é natural, não é necessário, mas algo doentio que precisa de autoexame e tratamento.

 

Quem vive se anulando pelo outro deve rever profundamente sua vida. A infelicidade é o destino inexorável daqueles que seguem esse caminho. Por isso dissemos: não perca sua vida anulando a si mesmo. Não viva pelo outro, viva por você. Cada pessoa vive a própria vida. Nossa existência é caracterizada pela arte do encontro e do convívio e não pelo escapismo e fraqueza de uma fusão emocional no outro. Não caia nesse erro. Ninguém pode ocupar o seu lugar a não ser você mesmo. Nenhuma pessoa, por melhor que ela seja, é capaz de preencher o buraco que ficou dentro de você. Não adianta dar a desculpa de que ama o outro e por isso se sacrifica. Isso nada tem a ver com amor, mas com apego, dependência e carência emocional. É certo que esse vazio somente nós podemos resolver.

 

Se você está se anulando pelo outro, vivendo em função do outro, apegado ao outro, ou sua vida é toda direcionada a alguém, reveja seus atos. Ninguém pode preencher a si mesmo com alguém. Você é uma pessoa… Você não deve se preencher com outra pessoa, caso contrário, você morre, deixa de existir e o outro passa a existir em seu lugar.

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